domingo, 23 de maio de 2010

Uma estrada para o meu coração



Na sopé da estrada eu esperava todos os dias, à mesma hora, sonhava sair desta terra falecida.
Meu avô sempre me dizia, eu ainda menina-moça: " não fiques aí tanto tempo na beira da estrada, que as poeiras vão sujar seus sonhos".
Mas,eu ficava. Ficava até a noite adormecer, esventrada de gente, vazada de vozes. Eu ficava ali, sempre gostei da poeira, porque ela me traz a ilusão dos caminhos que não conheço. Assim vou santificando os dias, sempre iguais, no mesmo-que-mesmo, nesta Vila - Fé , mais arejada que o céu, exposta ao longe e ao esquecer.

Nos finais do dia, quando a noite já esponta, meu avô Fulano, sentado na cadeira de baloiço do alpendre, chamava-me para o seu lado e dizia-me:

- " Venha aqui minha filha"
- " O quer de mim"
- " Eu quero conversar, com esta minha idade já ninguém me conversa"

Contava suas histórias, devaneios de outros tempos, memórias da sua existência, muitas outras vezes das suas desistências de vida. E eu ficava ali afinando o silêncio.

- " Eu, eu era ainda muito novo quando desatei a envelhecer. Para alguns, a vida sepulta mais que a morte. Eu, só tive duas condições: desterrado e enterrado." dizia-me.

Mas, o que gostava de ouvir mais eram os seus contos, estórias de outros tempos, outras vidas.

Certa vez contou-me, que em Luar-do-Chão não se bate à porta, por respeito. Quem bate à porta já entrou, já invadiu quintal, espaço privado. Por isso, à entrada do quintal, João Loucomotiva, batia palmas e gritava: Dá licença?

Pouso a minha atenção em meu avô, seu olhar parece mais modo de escutar. Escutava as histórias que o vento lhe trazia e naqueles momentos eu sabia que ele estava não só a fabricar uma história, mas também a vive-la com todos os seus sentidos. Mas, hoje não. Relembrava minha avó Mariavilha, nas muitas vezes que o repreendia, pelas asneiras da vida e ele lhe respondia : Não estou errado, estou é mal corrigido.

Fico refém dos meus pensamentos por um instante, ou terá sido mais do que isso, não consigo perceber, meu avô continua no mesmo modo de escutar.
Meu pai, foi escoado naquela mesma estrada aonde me alinho, nas minhas monotonalidades. Foi, não voltou. minha mãe ficou definhando os dias, e os vizinhos até inventavaram um fingimento, encomendas que eles próprios arranjavam. Seu marido lhe enviou isto, improvisavam. Tudo mentira. Por isso eu, agora, quero tanto ter saudade de alguém, no entanto não tenho ninguém em quem deitar amor. Podia gostar do velho Abstinêncio, que cuida de mim,por vezes. Mas não quero. Amor é como dever de religião -a gente não tem folga - Eu quero distracção para o meu peito, alívio de canseira. Uma estrada para o meu coração. De ida sem volta. Só para o além. Fico sonhando um dia, o belo motorista abre a porta e me pergunta sobre o meu destino.

- A senhorinha segue na cidade? - Não, vou para a outra, a seguinte. - A seguinte? É que depois não há mais cidade. A seguir não há mais lugar nenhum. - É exactamente aí que eu vou.

É exactamente para o sitio que não existe que quero ir. Encontrar e Viver o amor que não existe.

O meu avô levantou-se e deu dois passos pesados, como carregasse todas histórias do mundo nas suas costas. Pareceu adivinhar os meus pensamentos e disse-me: A lua anda devagar mas atravessa o mundo.

Para ti...
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Fragmentos de Textos de Mia Couto ( Na berma de nenhuma Estrada; Um Rio chamado Tempo, Uma casa chamada Terra;Terra Sonâmbula) Imagem: Malangatana (pintor Moçambicano)

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