quinta-feira, 20 de maio de 2010

Dialogos com Pessoa


Subo o Chiado a caminho da Brasileira com o jornal debaixo do braço a marcar o pesado e chuvoso dia de 16 de Fevereiro de 1913. As muralhas do Castelo ficaram para trás, assim como a memória (ou seria mais o cheiro) do lodo do Cais do Sodré de onde tinha vindo.

Ocupo uma mesa solitária ao fundo da sala e tento não pensar no que hoje me fez andar pela cidade, perdido, sem noção do tempo, um passeio totalmente estéril pelas ruas da Cidade. Com o café a fumegar os meus pensamentos, reparo que são já 14 horas e recordo: Terei passado pelo Bairro Alto e descido pela Rua do Norte e voltado a subir vezes sem conta? Não me recordo...

Preciso de te escrever...retiro o caderno da pasta e guardo o jornal. Começo a endereçar te a carta quando uma estranha pessoa se aproxima.

-Dá-me licença...? Vejo que não está muito interessado no nosso amigo Afonso Costa.

- Desculpe?

- O jornal, caro amigo! Guardou aí A Nação, importa-se que veja?

- Claro, desculpe,hoje estou longe hoje....perdido nos meus pensamentos.

- "Temos, todos que vivemos, uma vida que é vivida e outra vida que é pensada. E a única vida que temos é essa que é dividida entre a verdadeira e a errada." Sabe,eu, os meus pensamentos são todos sensações.Penso com os olhos e com os ouvidos e com as mãos e os pés e com o nariz e a boca.

Que vida é essa que esta a ser pensada neste momento? Se não lhe importa que lhe seja perguntado? Politica não é certamente - (sorriu amigavelmente). Problemas do sentir talvez?

- Sim, a ausência da minha noiva...

- Sim, compreendo. Talvez, mais do que possa imaginar. Vejo que tal como eu sente a necessidade de escrever-lhe. Sabe, encontramos-nos curiosamente na mesma peculiar situação, por força das circunstancias, esta de escrever...

- Sim, inconformado com a distancia, escrevo....

- Também eu, caro amigo! - (Disse agora um pouco agitado) - Também eu! Não me conformo com a ideia de escrever ! Queria antes falar-lhe, te-la sempre ao pé de mim, não ser necessário mandar cartas. "As cartas são sinais de separação – sinais, pelo menos, pela necessidade as escrevermos, de que estamos afastados." Bahh! Caríssimo! Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas. Pensando melhor, digo-lhe mesmo, afinal, só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor é que são ridículas.

- O pior é que não recebo noticias a algum tempo e não sei o que lhe vai na alma e esta distância aumenta a saudade, a ansiedade, a vontade de um regresso.

- "A alma de outrem é outro universo com que não há comunicação possível, com que não há verdadeiro entendimento. Nada sabemos da alma senão da nossa. As dos outros são olhares, são gestos, são palavras, com a suposição de qualquer semelhança no fundo."

- Cabe-me discordar, porque eu sinto, que os nossos dois mundos vivem entrelaçados e abraçados numa dança sem fim.

Sabe, surpreende-me confessa-lo a si, mas sinto que me compreende. Tenho vivido dias ausente de mim próprio, ausente do mundo! Nem tenho aproveitado o tempo, os dias que se sucedem uns atrás dos outros, sempre iguais.

-"É sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém"...Relembrou-me agora certo amigo meu, Alberto de seu nome, que muito me dizia a este respeito do tempo. "Vive, dizes, no presente; Vive só no presente.Mas eu não quero o presente, quero a realidade; Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede." Dizia-me ele, por isso, caríssimo, aproveite aquilo que existe à sua volta...Não queira incluir o tempo no seu esquema. Não queira pensar nas coisas como presentes; queira pensar nelas como coisas. Não separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. Nem por reais as devia tratar. Não as devia tratar por nada. Devia vê-las, apenas vê-las. Vê-las até não poder pensar nelas, vê-las sem tempo, nem espaço,ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Caríssimo, agora se me dá licença chegou ali o meu amigo Ilídio, que me aguarda. E lembre-se "às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o tempo passar, vale a pena ter nascido". Aproveite as pequenas coisas boas da vida, boas noticias hão de chegar e não considere a vida uma estalagem onde tem que se demorar até que chegue a diligência do abismo.

Encontramos-nos por aí, um dia quem sabe,

- Sim, quem sabe, até um dia..

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